quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Estrada Para Perdição

A sociedade burguesa nos EUA possui algumas dimensões histórico-concretas particulares. A principal é que, desde primórdios do século XX, a sociabilidade do capital vigente assumiu nela sua forma explicita e mais desenvolvida. Nesta sociedade histórica encontranos o campo pleno de desenvolvimento da lógica mercantil, de suas positividades e negatividades ampliadas. O que se constitui no século XIX como os Estados Unidos da América se revelou, desde seus primórdios como a Nação do Capital, do sistema social lastreado no dinheiro, poder e ideologia da possesividade e vendabilidade universal. Por isso, explicitam-se traços precoces de estranhamento (e fetichismo) social e de sociabilidade degradada, baseada em afetos destrutivos e de morte. A figura do gangster e do crime organizado, seja em sua forma familiar, seja como grande corporação capitalista, aparece como a síntese deste desenvolvimento da Nação do Capital. Indústria e Guerra, Negócios e Criminalidade se imbricam no capitalismo desenvolvido dos EUA. Por outro lado, tal civilização do capital tende a criar enquanto possibilidade concreta, um campo ampliado de desenvolvimento da personalidade humano-genérica. É tal contradição candente entre individualidade humano-genérica e afetos de morte, baseados em relações de poder e do dinheiro, que irá tornar-se explicito na estrutura de sociabilidade na sociedae burguesa dos EUA.
Temas-chave: sociabilidade, fetichismo e estranhamento; violência e crime organizado; família e crise do capital. Imagem e fetichismo social.
Filmes relacionados: “O Poderoso Chefão”, de Ford Copolla; “Os Bons Companheiros”, de Martin Scorsese;
Análise do Filme
“Estrada para Perdição” de Sam Mendes não é apenas um filme de gangster, mas é um painel íntimo da sociabilidade burguesa nos EUA. O diretor Mendes se destaca, em seu segundo filme, como um analista perspicaz da sociedade norte-americana. Depois de “Beleza América”, de 1999, Mendes nos brinda com um pequeno retrato dos Estados Unidos da América em 1931, época da grande depressão. Os EUA já surge após a I Guerra Mundial (1914-1918), como uma grande potência industrial-financeira do mundo capitalista. Mas o que percebemos é que a sociedade burguesa nos Estados Unidos da América já nasce decrépita e degradada. Tal como em “Beleza Americana”, a narrativa de “Estrada para a Perdição” sugere um clima de necrofilia, de fascinação (e medo) pela morte. Talvez seja o próprio espírito da civilização do capital nos EUA, construída em cima de sangue, suor e lágrimas (do extermínio das populações indígenas à anexação colonialista de territórios no Sul). Na verdade, o american dream é uma odisséia de destruição criativa do capital, onde a morte tem sido a companheira constante, tal como ocorre na vida de gângsteres.Todo filme é impregnado de um clima de morte e vingança. E de fascínio mórbido pela imagem da morte (o personagem Harlem Maguire, interpretado por Jude Law, como iremos ver, é paradigmático).

A comparação com o outro filme de Mendes, “Beleza Americana” é flagrante: o personagem central, o gangster Michael Sullivan, interpretado por Tom Hanks, tal como Lester Burham (interpretado por Kevin Spacey) em “Beleza Americana”, é assassinado num momento catártico, numa casa de praia, logo após ter cumprido seu objetivo: vingar-se do assassino de sua mulher e filho. Quando a trama narrativa do filme parecia nos conduzia para um happy end, o que acontece é o acerto final do fotográfo-matador de aluguel, Harlem Maguirre, com o gangster, Michael Sullivan.
Como salientamos, o fotográfo Harlem Maguirre é, em si, um personagem curioso. É um dos personagens fascinantes da trama filmica de Sam Mendes. É um gangster como outro qualquer, mas que possui uma fascinação mórbida: tirar fotos dos seus cadáveres. Ora, ao misturar imagem e morte, Mendes, mais uma vez, traduz um traço essencial da sociabilidade burguesa nos EUA: a fascinação midiática pela morte, uma fascinação bastante compatível com as necessidades da ordem imperialista do capital. Ainda tomando “Beleza Americana” como referência básica, o personagem do fotografo pode ser considerado uma mescla de coronel Fitts com seu filho Rick Fitts.
O gangster Michael Sullivan, descendente de irlandeses, é fiel ao Chefão John Rooney, um velho gangter de Chicago, representado por Paul Newman, até o dia em que Connor Rooney, o filho do chefão, assassina sua mulher e filho (de Sullivan). Apenas o filho mais velho, Michael Sullivan Jr., sobrevive. A partir daí, vingar-se da morte de sua família, torna-se uma obsessão para Michael Sullivan. Seu objeto de vingança é o filho do Chefão, Connor, e apenas ele (Michael não busca destruir o império criminoso do velho Rooney, mas apenas obriga-lo a entregar seu filho para ser justiçado). Connor Rooney é um personagem medíocre, decadente, com uma expressão sempre irônica, mas cruel, que trapaceia o pai. A relação entre pai e filho é uma simbiose de morte. O pai sabe que o filho lhe trapaceia, desviando dinheiro para sua conta-corrente. Mas nada faz, demonstrando que, apesar de todo poder, nada pode contra seu sangue degradado. Essa incapacidade de lidar com a insensatez do filho e o afeto que possui por Michael Sullivan, que considera como um filho, tende a representar os sintomas da decadência imperial.

Os dilemas de John Rooney são os dilemas da velha América corporativa. Mendes continua mais uma vez, refletindo sobre a crise da família americana, pois o ideal de família, tão bem retratado por Francis Ford Coppola na trilogia “O Poderoso Chefão”, aqui é transfigurado na crise da “família” do Capo John Rooney, principalmente em sua relação neurótica com o filho Connor e que irá conduzir a família – inclusive sua organização criminosa - à ruína. Uma outra família é arruinada pelo ímpeto de Connor Rooney, a de Michael Sullivan. Ora, Connor é o alter ego destruidor de John Rooney. Por isso, o pai nada pode contra ele. É Connor quem deverá precipitar o declínio e a morte da “família” do Chefão.

A desestruturação da família é um tema constante na estruturas narrativas do cinema americano. E Mendes utiliza um drama de gangster de 1931 para refletir a crise da sociabilidade burguesa dos nossos dias. É possível apreender alguns detalhes curiosos e bastante significativos na trama narrativa de Road to Perdition (Mendes, tal como Kubrick e os grandes cineastas, não desprezam os detalhes da narrativa para traduzir elementos significativos da totalidade concreta). Por exemplo: é quase completa a ausência de policiais no filme (o único que aparece é morto pelo fotografo Harlem Maguirre à beira da estrada). É como se a ausência do Estado policial apenas torna-se mais claro a natureza do drama familiar, pois o filme é, antes de mais nada, como “Beleza Americana”, um drama familiar. É interessante ainda a presença do casal de fazendeiros, quase como a representar a nostalgia de uma vida rural bucólica, distante do ambiente de morte da cidade industrial.

Metrópole e trabalho operário é outro detalhe a ser destacado. Logo no início do filme aparece uma massa de operários se dirigindo ao trabalho, com um jornaleiro anunciando a manchete de morte de um operário por acidente de trabalho. Mais adiante, mais uma vez, o tema da manipulação da classe operária aparece, com o Chefão John Rooney fazendo referencia aos sindicatos – o velho gangster não quer interferir neles pois acredita que já interfere demais na vida dos operários fora da fábrica (Rooney talvez represente um velho estilo decadente de gangster).

O capo Rooney representa, de certo modo, a protoforma da elite dominante do capitalismo americano. Por outro lado, Michael Sullivan, seu fiel serviçal, poderia representar a “classe média” que vive à sua sombra, até que se vê envolvida numa trama estranhada (é possível um paralelo com a narrativa de “De olhos bem fechados”, de Stanley Kubrick, na relação que o Dr. Harford tem com a elite financeira).

É para a fazenda que o filho de Michael Sullivan retorna, ao final do filme, sugerindo que o filho deverá ter um destino diferente daquele do pai (o curioso é que o nome do filho é Michael Sullivan Jr., o que sugere uma continuidade da figura do pai). Como estamos em 1931, nada impede de imaginarmos que o pequeno fazendeiro possa ser despejado pelos barões das finanças, como ocorreu nos EUA dos anos 30 (que o diga o drama familiar de “Vinhas da Ira”, de John Ford). Mas nesse caso, os gangsteres serão outros e provavelmente o filho de Michael irá verificar que apenas as armas da vingança não lhe servirão.

Outro elemento significativo no filme é a casa da tia Sara, à beira do mar, o local onde Michael Sullivan foi assassinado por Harlem Maguirre, olhando para o mar, pela janela de vidro (mais uma vez, o paralelo com “Beleza America” - Lester Burham, representado por Kevin Spacey, é assassinado pelo Coronel Fitts, ao olhar a foto da família, na cozinha de sua casa). O mar representa esperança, mas também a incerteza. E o cenário da esperança, como sugere o filme, é a pequena fazenda.

O personagem da criança (ou pré-adolescente), Michael Sulllivam Jr., o narrador da história, é bastante interessante, pois ele, em todo filme, com exceção das cenas em que dirige o automóvel para o pai, durante os assaltos aos bancos, é meramente um espectador da barbárie e da odisséia de morte. Acompanha os assassinatos totalmente estupefato; primeiro, ao descobrir a ocupação do pai e depois, ao encontrar a mãe e o irmão, assassinados por Connor. Ao mesmo tempo, a criança demonstra seu fascínio pela leitura de histórias policiais (na escola diz não gostar de Matemática e sim de histórias bíblicas). É ele que irá guardar a memória do pai e do seu trágico destino, dele e da sua família.

Outro elemento do filme é a ausência de personagens femininos no filme (as únicas mulheres no filme exercem papel secundário, como a esposa de Michael Sullivan, Tia Sara ou a mulher do fazendeiro). Nos outros momentos em que aparecem mulheres, elas são objetos sexuais de gangsteres, as figuras masculinas que dominam o filme. São mulheres sufocadas pelo drama do poder, morte e vingança. Mulheres e crianças apenas acompanham o drama dos adultos homens. Road to Perdition é um drama familiar sem mulheres. Talvez a ausência das mulheres seja mais um elemento da crise da família burguesa. Em “Beleza Americana”, mesmo a personagem feminina central, Carolyn Burham, mulher do Lester, é quase um tipo masculino, ligada às factualidades do mundo burguês. Ela exerce na narrativa um papel ativo e de imposição quase masculina. Em Road to Perdition, o drama é masculino, de declínio do poder do homem branco, dominador, expresso nas figuras dos gangsteres.

Dizemos que o Estado como policia está ausente também do filme. Mas percebemos que o Estado assistencialista já aparece, de modo tímido, quando Michael Sullivan, em Chicago, enquanto vai conversar com um outro capo, deixa o filho numa repartição pública de atendimento a desempregados. É uma área imensa, lotada de proletários desempregados, mais uma expressão da depressão da economia americana em 1931. O ambiente social e econômico é de crise do mundo do trabalho, pois a disseminação da criminalidade é um aspecto da crise de sociabilidade do trabalho, como já observava Engels no livro A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (de 1842). Sam Mendes teve sensibilidade de captar tais breves momentos da situação operária no interior de um drama da elite do poder americano. Tanto o Chefão John Rooney, quanto Michael Sullivan, representavam, naquela época, elementos do poder de classe dominante, em sua expressão degradada (é visível a presença de banqueiros como receptadores do dinheiro sujo dos gângsteres).

No final do filme, o assassinato do Chefão Rooney por Michael sugere um ato catártico do próprio Michael. Numa noite de chuva, tal como em “Beleza Americana”, Michael consegue prestar contas consigo mesmo, pois naquele momento assassinou o Pai na figura do Chefão Rooney, um Pai omisso, indiferente à dor do “filho”. É claramente uma sugestão freudiana. A seguir, Michael Sullivan assassina, Connor (seu “irmão” impetuoso).

É claro que Road to Perdition é um filme histórico, de volta ao passado de crise, para refletir sobre a crise do presente, uma crise estrutural do capital (desde a década de 1970), cujas determinações de crise orgânica já vislumbrávamos nos anos 20 e 30 do século passado. O deslocamento temporal possui uma função heurística na trama narrativa. Na depressão dos anos 1930, com a onipresença de gângsteres, Mendes está refletindo, até de forma exagerada, o drama da crise do mundo burguês nos EUA. Talvez, hoje, os gângsteres sejam outros, menos visíveis e mais poderosos. Mas a situação de crise orgânica do capital, inclusive como representação do poder hegemônico da figura masculina continua.

É claro que o capo John Rooney será substituído por outro Chefão, é o que sugere Mendes. O que quer dizer que, em 1931, o declínio do Chefão Rooney seria apenas o declínio de um certo tipo de gangsterismo. Na verdade, o gangsterismo em suas múltiplas formas sócio-históricas, sempre caracterizou a sociedade norte-americana (em sua trilogia “O Poderoso Chefão”, Coppola já mostrava essa evolução geracional dos estilos de gângsteres nos EUA – de Marlon Brando a Al Pacino). Talvez a fixação em dramas de gangsters seja a forma do cinema americano apreender um traço da sociabilidade de poder nos EUA. As elites sempre tiveram um caráter gangsterista, que é expressão de uma forma hiperdesenvolvida de mercantilização das relações sociais. Portanto, Mendes segue a linhagem fílmica dos grandes Copolla ou Scorsese (Os Bons Companheiros), como verdadeiros analistas sociais do espírito do mundo burguês na América, cineastas da crise de autoconsciência da sociedade americana
Extraído de www.telacritica.org

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