quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Mutações. O futuro pós-humano

"A cada 18 meses dobra o poder de processamento dos computadores. Essa é a Lei de Moore. A partir dela, Ray Kurzweil, autor de A Era das Máquinas Espirituais, calculou que o futuro pós-humano, pós-biológico, estará consumado em 2045. Ou seja, daqui a 38 anos, dar-se-á, finalmente, o que os biotecnólogos chamam de Singularidade Tecnológica, conceito derivado de um prognóstico de Irving J. Good, que em 1965 previu que em algum momento a inteligência artificial (leia-se: computadores) alcançaria o mesmo padrão de sofisticação cognitiva da inteligência humana, e logo poria seus criadores no chinelo, institucionalizando o primado do pós-humano ou do transumano", escreve  Sérgio Augusto, em reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 11-08-2007. O jornalista fala do curso 'Mutações - Nova Configuração do Mundo', organizado pelo professor Adauto Novaes sobre as mais recentes configurações globais diante dos avanços tecnológicos.
Eis a notícia.
A passagem do homo habilis para o erectus nenhum de nós viu. A do neandertal para o sapiens, tampouco. Já a do sapiens para o - como chamá-lo? Homo transilis? Ciborguense? Frankenstecno? Transgenóide? - poucos de nós perderão. Seus protótipos já andam por aí, de passagem, em 'soft opening', evoluindo como, digamos, Steve Rogers, aquele franzino soldado que saiu de um laboratório das forças armadas americanas como o superanabolizado Capitão América.
Darwin adoraria ver onde foi desembocar o evolucionismo. Continuamos descendendo do macaco, mas a biotecnologia queimou tantas etapas e abriu tantos horizontes que não sabemos até quando seremos meros sapiens ou se já não somos mais o que éramos ou fomos. Avanços avassaladores da engenharia genética, da robótica e da nanotecnologia há tempos alteram nossas mentes, nossas memórias, nossos metabolismos, nossas personalidades, nossa progênie - quem sabe, um dia, até nossas almas serão modificadas em laboratórios e centros de pesquisas, e todos sonharemos com ovelhas elétricas, como os andróides de Blade Runner.
Aonde nos levará essa evolução radical? Ao céu da longevidade, da saúde perfeita, da inteligência superior, da força hercúlea, da memória prodigiosa, da resistência à dor, da comunicação telepática, num mundo organicamente integrado, sem fome, sem doenças, sem desigualdades sociais, ecologicamente equilibrado e com acesso irrestrito à informação? Ou ao inferno da entropia (mais Hulk, menos Capitão América), de abusos capazes de provocar sérios e imprevistos efeitos colaterais, com danos ainda mais catastróficos ao corpo humano, ao meio ambiente e à economia?
É dessas perguntas que parte um estudo precioso de Joel GarreauRadical Evolution, repleto de revelações sobre o admirável mundo novíssimo das pesquisas biotecnológicas e das mutações humanas, há dois anos à espera de uma tradução brasileira. Sua questão última ('o que, a essa altura, significa ser humano?') permanece em aberto. Obra de divulgação científica, jornalisticamente impecável, promove uma sucessão de assombros (ah, se vocês soubessem o que é um exosqueleto e conhecessem o currículo de invenções de uma agência de projetos avançados chamada Defense Advanced Research Projects Agency!), perplexidades (são incontáveis as provas de que vivemos o maior desafio humano dos últimos não sei quantos milhões de anos), preocupações (vírus para fins pacíficos podem virar armas letais nas mãos de um terrorista, nanorobôs com surtos homicidas) e questões éticas (que nos remetem aos alertas de Bill Joy, 'o Thomas Edison da Internet', Edward Tenner, Charles B. Perrow e outros abalizados profetas do apocalipse cibernético).
O exosqueleto, cujo protótipo foi desenvolvido pelo exército dos EUA, é um uniforme que possibilita a um soldado carregar, nas costas, nos braços ou a tiracolo, 90 quilos do que quer que seja como se estivesse carregando pouco menos de 3 quilos. Não demora muito e o conceito de E-skin, recurso nanotecnológico que permite às pessoas 'vestirem' a pele de seus ídolos do passado e do presente, deixará de ser uma fantasia, grife Mark Budz, lançada no romance futurista Idolon. Os direitos de imagem e propriedade física? Problemão jurídico. Mas, antes, uma questão ética. Poucos dias depois da publicação de Idolon (a R$18,28 na Livraria Cultura), a Unesco publicou um relatório sobre a Ética e a Política da Nanotecnologia.
Seria bastante produtivo se, antes de acompanhar o curso 'Mutações - Nova Configuração do Mundo', cada inscrito precariamente versado nas chamadas tecnologias GRIN (genética, robótica, informação e nanoprocessos) pudesse ler as 273 páginas de Radical Evolution (a R$ 68,38 na Livraria Cultura). Com a chancela do professor Adauto Novaes e patrocínio da Petrobras, 'Mutações' oferecerá 20 discussões sobre a evolução radical repertoriada por Garreau. Co-patrocinado pelaCaixa Econômica Federal, a Fiat e os Sescs de São Paulo e Paraná, o curso se estenderá a cinco capitais, começando pelo Rio de Janeiro, no dia 20.
'Foi o curso mais trabalhoso para montar, entre todos os que já organizamos', revela Novaes, que aproveitará a oportunidade para lançar a versão livro de seu curso anterior, O Esquecimento da Política, editado pela Agir e, de certo modo, uma prévia de algumas questões aprofundadas no novo ciclo de palestras. Por exemplo: o esvaziamento do convívio social e os entraves à ação política provocados pelas novas tecnologias.
'Vivemos uma época prodigiosamente vazia, na qual concepções políticas, crenças, idéias, sensibilidades, enfim, formas de existência e visões de mundo que antes pareciam dar sentido às coisas perdem valor', constata e lamenta Novaes, esclarecendo que os valores humanos não desapareceram, apenas certos meios de expressão desses valores. Tecnizado e mercantilizado, já é outro o mundo que habitamos. Para entendê-lo, precisamos nos abrir para outros conhecimentos. A tecnociência exige novos saberes. Do contrário, jamais superaremos os dilemas (o que somos? onde estamos? para onde vamos?) alimentados pela ignorância tecnológica.
'O estilo de vida e as concepções de mundo que hoje nos dominam são superficiais e mecânicos' - prossegue Novaes - 'e as antigas definições são insuficientes para entendê-las.' À nossa frente ou ao nosso redor, uma autêntica revolução antropológica, que nada tem a ver com as revoluções históricas (a Francesa, a Soviética, etc.), uma transformação que, segundo Jean Baudrillard, corresponde a uma perfeição automática do aparelho técnico, a uma capitulação do pensamento diante do seu duplo técnico, a uma desqualificação do homem, da qual nem o próprio homem tem consciência. Além da liberdade, o homem teria perdido a imaginação de si mesmo. A técnica não está em nosso poder; somos nós que, sem nos darmos conta, estamos em poder dela, alertou Jacques Bouveresse. Duvidar disso é render-se a um preconceito e a uma ilusão antropológica, arrematou Bouveresse.
O wittgensteiniano filósofo francês não virá para o curso. Em compensação, teremosJean-Pierre Dupuyexpert em nanoética, para quem a ciência e a técnica dominantes em nossas sociedades não podem ajudar a preencher o vazio de sentido que parece afetá-las, justamente por serem elas as principais responsáveis por esse vazio. Ou pela exacerbação do 'mal-estar' do mundo industrializado, com seus deprimidos, obesos, drogados e anoréxicos, os protagonistas da conferência da psicanalista Maria Rita Kehl. Outro francês presente, o geneticista Axel Khan, questionará o anti-humanismo moderno proposto há oito anos por Francis Fukuyama, o tecnocrata que 'enterrou' a História com ela ainda viva e respirando.
'Precisamos saber se nosso presente é fruto de uma mutação já consumada, ou se é transcrição para uma mutação ainda por vir', perguntará o diplomata e acadêmico Sergio Paulo Rouanet, partindo para uma defesa intransigente do humanismo daRenascença e do Iluminismo, de que ficamos órfãos por obra de uma 'tecnociência cega', que nos transformou em mutantes, 'tristes descendentes de uma humanidade perdida para sempre'. Dos mais otimistas do curso, Rouanet encara de frente o 'presente assustador' e nele procura os instrumentos para 'uma verdadeira mutação', aquela prenunciada na Encyclopédie iluminista, em que o homem recupere a 'capacidade de pensar o ser e programar seu destino, em vez de ser arrastado por uma tecnociência que lhe tira a visão do todo e o arrasta, como um turbilhão, em direção a um futuro não desejado'.
A cada 18 meses dobra o poder de processamento dos computadores. Essa é a Lei de Moore. A partir dela, Ray Kurzweil, autor de A era das máquinas espirituais, calculou que o futuro pós-humano, pós-biológico, estará consumado em 2045. Ou seja, daqui a 38 anos, dar-se-á, finalmente, o que os biotecnólogos chamam de Singularidade Tecnológica, conceito derivado de um prognóstico de Irving J. Good, que em 1965 previu que em algum momento a inteligência artificial (leia-se: computadores) alcançaria o mesmo padrão de sofisticação cognitiva da inteligência humana, e logo poria seus criadores no chinelo, institucionalizando o primado do pós-humano ou do transumano. Pelas previsões de Kurzweil, estabelecida a hegemonia da inteligência artificial, surgirão organismos bio-cibernéticos e a evolução tecnológica ocorrerá de forma extremamente rápida, em escala e proporções inimagináveis.
Humanos de todo o mundo, uni-vos! Nada tendes a perder, a não ser o que já não é vosso.

Texto extraído do Instituto Humanitas, da Unisinos.

Ciborgues - o corpo pós-humano


As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes. (Haraway, 2000, p. 46).
Provavelmente o primeiro produto cultural dessa "nova ordem do real" baseada na cibernética, o ciborgue conjuga as promessas da biônica com as perspectivas anunciadas pela cibernética. O termo bionics foi cunhado em 1960 pelo major Jack Steele, da Força Aérea Americana, para descrever o emergente campo de pesquisas cuja análise do funcionamento dos sistemas vivos visa reproduzir os truques da natureza em artefatos sintéticos (Lodato, 2001, p. 2). Em outras palavras, a "biônica" é uma área relacionada com a biomimética, que pode ser definida como a "ciência de sistemas que têm alguma função copiada da natureza, ou que represente características de sistemas naturais ou seus análogos" (Vincent, [s.d.], p. 1, tradução minha). Já o termo cyborg nasceu da contração de cybernetics organism e foi apresentado, também em 1960, por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline em um simpósio sobre os aspectos psico-fisiológicos do vôo espacial. Inspirados por uma experiência realizada nos anos 1950 em um rato, no qual foi acoplada uma bomba osmótica que injetava doses controladas de substâncias químicas, eles apresentaram a idéia de se ligar ao ser humano um sistema de monitoramento e regulagem das funções físico-químicas a fim de deixá-lo dedicado apenas às atividades relacionadas com a exploração espacial.
Em 1972, Martin Caidin lançou a ficção científica Cyborg, que conta a história de um piloto de testes da Força Aérea americana, Steve Austin, que após um grave acidente é reconstruído com partes biônicas pelo laboratório cibernético do Dr. Killian.
Lee Major- o homem biônico
O ciborgue que Caidin nos legou é produto de uma biônica reinventada que, sob a inspiração da idéia de Clynes e Kline, não é mais uma simples técnica de mimese da natureza, mas um meio de reconstruí-la e superá-la. A história do homem biônico Steve Austin tornou-se famosa com a série de TV entitulada The Six Million Dollar Man("O homem de seis milhões de dólares"), veiculada na década de 1970 (Abbate, 1999). A figura do homem biônico, cujo corpo natural é melhorado com o acoplamento de máquinas vem, desde então, sendo reproduzida à exaustão.
O ciborgue é também uma forma de retomar o sonho de Victor Frankenstein disfarçando aquilo que causava horror na sua criatura morta-viva feita com retalhos de cadáveres de pessoas e animais esquartejados "ainda vivos para aproveitar-lhe o sopro de vida na recomposição":
Ninguém poderia suportar o horror do seu semblante. Uma múmia saída do sarcófago não causaria tão horripilante impressão. Quando o contemplara, antes de inocular-lhe o sopro vital, já era feio. Mas agora, com os nervos e músculos capazes de movimento, converteu-se em algo que nem mesmo no inferno dantesco se poderia conceber. (Shelley, 1998, p. 53-54).
Certamente, os significados do homem pós-humano foram determinados sobremaneira pelos resultados e promessas da ciência e da tecnologia, sem os quais o ciborgue não seria sequer inteligível. O coração é um dos objetos mais emblemáticos - tanto pela sua importância fisiológica como pelo seu valor simbólico - dos esforços científicos em superar os limites do homem com máquinas. Não por acaso, o coração foi um dos primeiros órgãos - talvez o primeiro - a receber o acoplamento definitivo de uma máquina.
O desenvolvimento de próteses também está intimamente ligado à superação de limites. Originalmente tais limites eram os impostos àqueles cuja natureza do corpo fora mutilada, por nascença ou acidente. Mas hoje, acoplados em próteses de competição, os para-atletas velocistas agregam muita tecnologia. E eles são capazes ultrapassar, e muito, a velocidade das pessoas comuns e chegam próximo às de recordistas mundiais olímpicos:
Tony Volpentest inspira admiração e, quem sabe, até despeito. Munido de duas pernas mecânicas, o atleta americano, de 26 anos, faz 100 metros rasos em impressionantes 11 segundos e 36 centésimos de segundo - apenas um segundo e meio atrás do recordista mundial, o canadense Donovan Bailey, que nasceu com tudo no lugar. Medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, em 1996, Tony veio ao mundo sem os pés e sem as mãos (Dias, 1999, p. 136).
Exibindo próteses de alta tecnologia, desenhadas sob medida para competições, a imagem de para-atletas tem sido explorada em propagandas e desfiles de moda. No discurso da mídia e da propaganda, onde exibem ostensivamente o seu corpo híbrido, os para-atletas corredores materializam hoje as aspirações do futuro do corpo pós-humano, o homem redesenhado para uma "melhor performance". De certa forma, poderíamos dizer que uma das manifestações da cibercultura é o "culto à performance". Com efeito, as próteses de alta perfomance assumem o design dinamizado, matematizado e geometrizado da máquina: elas não pretendem mais reproduzir as formas do corpo humano, mas são desenhados apenas em função do desempenho.
Talvez o corpo ideal do body building - atlético, sexy e clean - tão em moda atualmente, já seja um reflexo no nosso cotidiano desse mesmo pensamento cibernético. Na medida em que a máquina torna-se, de fato, a unidade de medida do homem, uma nova postura estética do corpo toma forma frente à valorização da performance: o que é belo está, cada vez mais, relacionado com o desempenho desejado (essa noção tão cibernética). Daí a noção afetada de pureza na qual comer um torresmo ou fumar um cigarro são atos relativamente mais impuros do que ingerir complementos alimentares sintéticos ou injetar hormônios artificiais. Na perspectiva da "estética" da performance, as máquinas de musculação, os programas planejados de modelagem muscular, as próteses estéticas, as técnicas cirúrgicas de lipoaspiração, a toxina botulínica (Botox), os anabolizantes e os complementos alimentares são apenas meios que a tecnologia disponibiliza para se atingir a imagem do corpo de alto desempenho, a imagem na direção do corpo pós-humano.

Extraído de Cibernética, ciborgues e ciberespaço: notas sobre as origens da cibernética e sua reinvenção cultural - Joon Ho Kim
Universidade de São Paulo - Brasil