As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes. (Haraway, 2000, p. 46).
Provavelmente o primeiro produto cultural dessa "nova ordem do real" baseada na cibernética, o ciborgue conjuga as promessas da biônica com as perspectivas anunciadas pela cibernética. O termo bionics foi cunhado em 1960 pelo major Jack Steele, da Força Aérea Americana, para descrever o emergente campo de pesquisas cuja análise do funcionamento dos sistemas vivos visa reproduzir os truques da natureza em artefatos sintéticos (Lodato, 2001, p. 2). Em outras palavras, a "biônica" é uma área relacionada com a biomimética, que pode ser definida como a "ciência de sistemas que têm alguma função copiada da natureza, ou que represente características de sistemas naturais ou seus análogos" (Vincent, [s.d.], p. 1, tradução minha). Já o termo cyborg nasceu da contração de cybernetics organism e foi apresentado, também em 1960, por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline em um simpósio sobre os aspectos psico-fisiológicos do vôo espacial. Inspirados por uma experiência realizada nos anos 1950 em um rato, no qual foi acoplada uma bomba osmótica que injetava doses controladas de substâncias químicas, eles apresentaram a idéia de se ligar ao ser humano um sistema de monitoramento e regulagem das funções físico-químicas a fim de deixá-lo dedicado apenas às atividades relacionadas com a exploração espacial.
Em 1972, Martin Caidin lançou a ficção científica Cyborg, que conta a história de um piloto de testes da Força Aérea americana, Steve Austin, que após um grave acidente é reconstruído com partes biônicas pelo laboratório cibernético do Dr. Killian.
Lee Major- o homem biônico
O ciborgue que Caidin nos legou é produto de uma biônica reinventada que, sob a inspiração da idéia de Clynes e Kline, não é mais uma simples técnica de mimese da natureza, mas um meio de reconstruí-la e superá-la. A história do homem biônico Steve Austin tornou-se famosa com a série de TV entitulada The Six Million Dollar Man("O homem de seis milhões de dólares"), veiculada na década de 1970 (Abbate, 1999). A figura do homem biônico, cujo corpo natural é melhorado com o acoplamento de máquinas vem, desde então, sendo reproduzida à exaustão.
O ciborgue é também uma forma de retomar o sonho de Victor Frankenstein disfarçando aquilo que causava horror na sua criatura morta-viva feita com retalhos de cadáveres de pessoas e animais esquartejados "ainda vivos para aproveitar-lhe o sopro de vida na recomposição":
Ninguém poderia suportar o horror do seu semblante. Uma múmia saída do sarcófago não causaria tão horripilante impressão. Quando o contemplara, antes de inocular-lhe o sopro vital, já era feio. Mas agora, com os nervos e músculos capazes de movimento, converteu-se em algo que nem mesmo no inferno dantesco se poderia conceber. (Shelley, 1998, p. 53-54).
Certamente, os significados do homem pós-humano foram determinados sobremaneira pelos resultados e promessas da ciência e da tecnologia, sem os quais o ciborgue não seria sequer inteligível. O coração é um dos objetos mais emblemáticos - tanto pela sua importância fisiológica como pelo seu valor simbólico - dos esforços científicos em superar os limites do homem com máquinas. Não por acaso, o coração foi um dos primeiros órgãos - talvez o primeiro - a receber o acoplamento definitivo de uma máquina.
O desenvolvimento de próteses também está intimamente ligado à superação de limites. Originalmente tais limites eram os impostos àqueles cuja natureza do corpo fora mutilada, por nascença ou acidente. Mas hoje, acoplados em próteses de competição, os para-atletas velocistas agregam muita tecnologia. E eles são capazes ultrapassar, e muito, a velocidade das pessoas comuns e chegam próximo às de recordistas mundiais olímpicos:
Tony Volpentest inspira admiração e, quem sabe, até despeito. Munido de duas pernas mecânicas, o atleta americano, de 26 anos, faz 100 metros rasos em impressionantes 11 segundos e 36 centésimos de segundo - apenas um segundo e meio atrás do recordista mundial, o canadense Donovan Bailey, que nasceu com tudo no lugar. Medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, em 1996, Tony veio ao mundo sem os pés e sem as mãos (Dias, 1999, p. 136).
Exibindo próteses de alta tecnologia, desenhadas sob medida para competições, a imagem de para-atletas tem sido explorada em propagandas e desfiles de moda. No discurso da mídia e da propaganda, onde exibem ostensivamente o seu corpo híbrido, os para-atletas corredores materializam hoje as aspirações do futuro do corpo pós-humano, o homem redesenhado para uma "melhor performance". De certa forma, poderíamos dizer que uma das manifestações da cibercultura é o "culto à performance". Com efeito, as próteses de alta perfomance assumem o design dinamizado, matematizado e geometrizado da máquina: elas não pretendem mais reproduzir as formas do corpo humano, mas são desenhados apenas em função do desempenho.
Talvez o corpo ideal do body building - atlético, sexy e clean - tão em moda atualmente, já seja um reflexo no nosso cotidiano desse mesmo pensamento cibernético. Na medida em que a máquina torna-se, de fato, a unidade de medida do homem, uma nova postura estética do corpo toma forma frente à valorização da performance: o que é belo está, cada vez mais, relacionado com o desempenho desejado (essa noção tão cibernética). Daí a noção afetada de pureza na qual comer um torresmo ou fumar um cigarro são atos relativamente mais impuros do que ingerir complementos alimentares sintéticos ou injetar hormônios artificiais. Na perspectiva da "estética" da performance, as máquinas de musculação, os programas planejados de modelagem muscular, as próteses estéticas, as técnicas cirúrgicas de lipoaspiração, a toxina botulínica (Botox), os anabolizantes e os complementos alimentares são apenas meios que a tecnologia disponibiliza para se atingir a imagem do corpo de alto desempenho, a imagem na direção do corpo pós-humano.
Extraído de Cibernética, ciborgues e ciberespaço: notas sobre
as origens da cibernética e sua reinvenção cultural - Joon Ho Kim
Universidade de São Paulo - Brasil
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