1. Somos “bichos” sociais
Os seres humanos são de “natureza” social, vivem dentro de padrões sociais e são socializados para aprenderem esses padrões. Mas a primeira pergunta que nos cabe é: o que é esta “natureza social” do ser humano? Para respondermos a isso devemos desenvolver o raciocínio seguinte.
a) Os seres humanos possuem um organismo biológico “incompleto”. Isto significa que se não houvesse cultura, se não aprendêssemos com outras pessoas o que precisamos para nos orientar na vida, seríamos uma monstruosidade, um caso psiquiátrico clássico, um caos. Alguns animais já nascem andando e fazendo coisas necessárias a sua sobrevivência, mas o ser humano não, ele precisa aprender. Nascemos com um organismo ainda em formação e sem sabermos falar, andar, nos comportar. Isso aprendemos na vida social. É por isso que podemos até mesmo afirmar que a necessidade da vida social e da cultura para o ser humano possui um fundamento biológico. O ser humano possui uma abertura para o mundo que lhe possibilita ser qualquer coisa que escolher. Mas por ter um organismo incompleto e por ter essa capacidade de aprender, essa plasticidade (sua abertura para o mundo), se não vivesse em grupo e aprendesse com o grupo, os seres humanos sucumbiriam aos desafios da natureza. Essa abertura precisa ser relativamente fechada por meio de padrões de conduta e formas de pensar que ele aprende na vida social. O ser humano é um ser que possui uma enorme plasticidade, isto é, capacidade para se moldar a condições bem diversas de vida.
b) Temos poucos instintos, porém temos instituições sociais. O ser humano possui alguns instintos básicos referentes à sobrevivência, à sexualidade etc. Mas diferentemente de outras espécies animais, seus instintos ajudam muito pouco. Ele não pode depender de uma programação genética que, a rigor, não possui. Devido a essa abertura para o mundo, devido a ter um organismo biológico extremamente generalista, isto é, capaz de adaptações numa escala ampla, devido a não ter muitos instintos, o ser humano supre essa carência com a construção de instituições sociais que regem as mais diversas áreas de sua vida por meio de ritos e normas específicas: o casamento, o Estado, a justiça etc.
c) Desde o nascimento dependemos de outros para sobreviver. É preciso que outros nos alimentem e protejam do perigo. E também que nos dêem afeto e amor, que nos ensinem a ter auto-estima, elementos essenciais para o crescimento. Isso se aplica aos bebês e às crianças pequenas, mas também a toda nossa vida. Estamos sempre aprendendo com o grupo.
d) Aprendemos com outros a sobreviver. Quando nascemos, não sabemos como sobreviver. O instinto não ajuda muito. Nossas ações são aprendidas; emergem da interação com outros: pais, amigos, professores, ídolos da televisão, estranhos, livros etc. Aprendemos a falar, a amar, como e quando lutar, trabalhar e nos divertir. Aprendemos a falar o que pensamos, a nos defender e fazer comida. A vida é aprender a resolver problemas com que nos defrontamos. Esse é um processo contínuo. Assim, temos de aprender também a viver quando nos aposentamos, e até mesmo aprender a morrer.
e) Passamos a vida inteira num grupo social. Todos nós nascemos em uma sociedade, e raramente a deixamos. Vivemos nela a vida toda. Muitos nascem e morrem sem ter tido contato com outro grupo social. Vivemos em uma comunidade organizada. Trabalhamos e nos divertimos em muitos grupos formais e informais. Cada um possui regras que devemos seguir ou códigos de conduta e comunicação; cada um nos socializa. Muitos dão sentidos a nossa vida (pensem no caso de uma pessoa religiosa, onde seu trabalho na igreja é sua vida; ou ainda em pessoas que fazem de seu trabalho e de sua empresa o seu projeto de vida). Não é possível imaginarmos que os grupos dos quais participamos não influem em nosso modo de ser na vida.
f) Muitas de nossas qualidades individuais dependem de interação. Cada um de nós desenvolve idéias, princípios, valores, objetivos, interesses, talentos, emoções e tendências para atuar no mundo que dependem da nossa história de vida. É a interação que direciona essas qualidades individuais. Até para ser um indivíduo precisamos da vida social. Se observarmos outras sociedades, veremos que a idéia de indivíduo não existe para todas. O indivíduo concreto, empírico, de fato existe. Porém, o indivíduo enquanto construção moral e jurídica, enquanto sujeito, não existe para todas as sociedades. Como nós o pensamos, ele é uma construção ocidental moderna. Nossas sociedades permitem diferenciações até ao nível individual. Somos diferentes uns dos outros também por termos uma história diferente, pois ninguém é socializado da mesma forma.
g) Desenvolvemos um Eu e uma dimensão simbólica. Os símbolos e o Eu são qualidades humanas que mudam nossa interação com o meio e com os outros. Em vez de simplesmente reagir a estímulos, de meramente sermos condicionados por outros, nós nos tornamos seres ativos devido a essas qualidades. Seres humanos não são robôs. Os símbolos (que são tudo aquilo que representa outra coisa, como as palavras) são fundamentais para a vida social e humana, pois é por meio deles que nos comunicamos e desenvolvemos nossa capacidade de pensar. O Eu é nossa capacidade de pensarmos sobre nós mesmos e de criarmos uma identidade. Podemos até dizer que o Eu é nossa identidade, aquilo que acreditamos que somos, como nos percebemos. A vida social não seria possível sem essas qualidades. Mais que isto, essas qualidades humanas somente podem ser desenvolvidas pela interação entre os indivíduos, ou seja, na vida social. E são aprendidas e desenvolvidas pela socialização. São essas qualidades que nos permitem resolver problemas, são elas que explicam a diversidade de costumes entre os seres humanos e são elas também que nos permitem ser autônomos. Isto significa que é justamente porque dependemos de outros no início de nossa vida que conquistamos um certo de espaço de autonomia, ainda que limitada pelas normas sociais.
h) Somos atores sociais. Isto significa que, gostando ou não, constantemente ajustamos nossas ações àqueles que nos cercam. Sim, tentamos, às vezes impressionar os outros, nos comunicar com eles, influenciá-los, evitá-los ou, no mínimo, ajustamos nossas ações de modo a poder fazer o que desejamos sem sermos importunados por essas pessoas. Contudo, como vivemos em meio a outros indivíduos, nossas ações são formadas tendo-os em mente. O que quer dizer: agimos orientados pelas expectativas e comportamentos dos outros. A vida social é, em grande medida, um sistema de reciprocidade, de relações que se constituem por expectativas recíprocas, pelas tentativas de manipulação das impressões por meio do desempenho de papéis sociais. Somos atores sociais, temos de levar em consideração as ações dos outros quando atuamos, pois não vivemos no isolamento. O que fazemos, em grande medida, resulta ou é influenciado pelo que fazem as pessoas à nossa volta. Mas dizer que somos atores sociais também é afirmar que somos, em parte, livres e que atuamos e influenciamos uns aos outros. Que somos capazes de escolhas, ainda que essas escolhas sejam sempre limitadas e contextualizadas.
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